Depois de ter ouvido, numa aula, de um professor, que em cada palavra mora este monstro, um estereótipo, Joana sabia, de um saber do não saber, seu novo saber, que o monstro do estereótipo podia ser também os narcísicos estereótipos, ou os estereótipos narcísicos de ter a pretensão de não ser estereótipo de liberdade, de igualdade, de disponibilidade, no estereótipo dos tipos do orgulho, no estereótipo dos tipos típicos dos picos, que escondem seus penicos, esperando, no pinico, que os estereotipados povos das planícies, do Cruzeiro do Sul,os endeusem
Joana era uma menina negra muito corajosa e inteligente. Estudiosa, e curiosa, e talentosa, e maravilhosa, e alegrosa, e muitas outras palavras em osas, como valorosa, valor e rosa, ela estava vindo da escola, e estudava à noite, e trabalhava de dia, e então, de repente, uma forte chuva começou a cair, relâmpagos e trovões cortavam o céu, parecia um dilúvio, chegando sem avisar, já que há um segundo atrás Joana tinha olhado pro céu e pensado:
-- Nossa mãe, tem muito tempo que eu não vejo um céu tão bonito, com tantas estrelas, até o Cruzeiro do Sul dá pra ver – pensou ela pra ela mesma.
-- E essa chuva estranha agora, parece que o céu está caindo em cima da gente, pensou novamente.
Joana não gostava, mas era infelizmente muito sozinha e, assim, ela aprendeu a conversar com ela mesma, de modo que ela conhecia muitas Joanas que moravam dentro dela. Dependendo da situação, ela conversava com uma delas. Às vezes, era com a Joana estudiosa, às vezes, era com a Joana corajosa, às vezes, com a talentosa, mas tinha também a Joana medrosa, a Joana preguiçosa, a Joana dengosa, a Joana perigosa, e outras muitas Joanas terminadas em osas.
Cada uma das Joanas dentro da Joana, era de um jeito, todas negras , de cabelos penteados, cortados, trançados, de um jeito; com jeito de vestir e de conversar de um jeito só delas, de cada uma delas. Também com jeito de andar, pensar, sonhar, ser-não-sendo. Cada uma era uma. E Joana conhecia todas intimamente, como se todas fossem uma. E todas eram mesmo, uma: a Joana.
Mas onde estávamos mesmo?. Sim, na chuva forte, no dilúvio. Joana estava na Avenida Serrano, no Bairro Serrano, em BH, onde morava. Estava já na Praça Serrano, a Praça da Igreja São Dimas, onde costumava ir, aos domingos, à missa, com a mãe e os irmãos. E a chuva caindo, logo após ela ter saído da Escola Municipal Maria de Magalhães. Ela era aluna do professor Luís.
E ela, diante de uma chuva tão esquisita e inesperada, pensou, ou melhor, conversou, com a Joana corajosa:
-- Joanita – esse era o nome da Joana corajosa – não fique com medo, não dê ouvidos à Joana medrosa, a Joaninha.
Com Joanita, foi descendo calmamente a Avenida Serrano, indo, indo, pondo perpétuo na imensidão; pro rio, pro rio, cujas águas, em cada ponto, nunca são as mesmas; o rio, o rio, o rio, de nosso delírio, lírio, lírio, rio, io, ia.
Assim foi e assim fez.
Depois de um escorregão, como Alice do País das Maravilhas, caiu, caiu, caiu. E tudo ficou ainda pior: a luz acabou. A luz das casas e dos postes, das ruas. E tudo ficou um breu, tão escuro que não era possível enxergar um palmo, à frente do nariz.
Joana, destemida, não se deu por vencida. Tinha luz própria, como as estrelas de antes do dilúvio. Gente é pra brilhar, não pra morrer de medo.
Assim ela prosseguiu seu caminho, na tormenta, e brilhava na hostilidade das horas, até que tudo se apagou de vez.
Na radiante manhã do dia seguinte, foi encontrada morta, na Lagoa da Pampulha, tendo sido levada pelas correntezas do córrego do Bairro Urca, que, nela, deságuam, nos esgotos da Logoa da Pampulha: bomba radioativa de nossas bostas, a adubar uma estranha flor que ali, apesar de tudo, insiste e persiste, florindo sua imprópria própria luz.
Não se chamava Narciso, a flor. É anônima, por nunca ser a mesma, na correnteza dos rios de muitos nomes.
Na lama dos esgotos ou nos esgotos das lamas, na flor sem nome, alma, Joana ainda vive, inclassificável, inapreensível, invisível, brilho de esperança, no narcísico dilúvio do mundo; rio que insiste em ser igual a si mesmo, em cada ponto de seu fluir, afogando as Joanas que vivem ao sul: Cruzeiro do Sul.
Joana era uma menina negra muito corajosa e inteligente. Estudiosa, e curiosa, e talentosa, e maravilhosa, e alegrosa, e muitas outras palavras em osas, como valorosa, valor e rosa, ela estava vindo da escola, e estudava à noite, e trabalhava de dia, e então, de repente, uma forte chuva começou a cair, relâmpagos e trovões cortavam o céu, parecia um dilúvio, chegando sem avisar, já que há um segundo atrás Joana tinha olhado pro céu e pensado:
-- Nossa mãe, tem muito tempo que eu não vejo um céu tão bonito, com tantas estrelas, até o Cruzeiro do Sul dá pra ver – pensou ela pra ela mesma.
-- E essa chuva estranha agora, parece que o céu está caindo em cima da gente, pensou novamente.
Joana não gostava, mas era infelizmente muito sozinha e, assim, ela aprendeu a conversar com ela mesma, de modo que ela conhecia muitas Joanas que moravam dentro dela. Dependendo da situação, ela conversava com uma delas. Às vezes, era com a Joana estudiosa, às vezes, era com a Joana corajosa, às vezes, com a talentosa, mas tinha também a Joana medrosa, a Joana preguiçosa, a Joana dengosa, a Joana perigosa, e outras muitas Joanas terminadas em osas.
Cada uma das Joanas dentro da Joana, era de um jeito, todas negras , de cabelos penteados, cortados, trançados, de um jeito; com jeito de vestir e de conversar de um jeito só delas, de cada uma delas. Também com jeito de andar, pensar, sonhar, ser-não-sendo. Cada uma era uma. E Joana conhecia todas intimamente, como se todas fossem uma. E todas eram mesmo, uma: a Joana.
Mas onde estávamos mesmo?. Sim, na chuva forte, no dilúvio. Joana estava na Avenida Serrano, no Bairro Serrano, em BH, onde morava. Estava já na Praça Serrano, a Praça da Igreja São Dimas, onde costumava ir, aos domingos, à missa, com a mãe e os irmãos. E a chuva caindo, logo após ela ter saído da Escola Municipal Maria de Magalhães. Ela era aluna do professor Luís.
E ela, diante de uma chuva tão esquisita e inesperada, pensou, ou melhor, conversou, com a Joana corajosa:
-- Joanita – esse era o nome da Joana corajosa – não fique com medo, não dê ouvidos à Joana medrosa, a Joaninha.
Com Joanita, foi descendo calmamente a Avenida Serrano, indo, indo, pondo perpétuo na imensidão; pro rio, pro rio, cujas águas, em cada ponto, nunca são as mesmas; o rio, o rio, o rio, de nosso delírio, lírio, lírio, rio, io, ia.
Assim foi e assim fez.
Depois de um escorregão, como Alice do País das Maravilhas, caiu, caiu, caiu. E tudo ficou ainda pior: a luz acabou. A luz das casas e dos postes, das ruas. E tudo ficou um breu, tão escuro que não era possível enxergar um palmo, à frente do nariz.
Joana, destemida, não se deu por vencida. Tinha luz própria, como as estrelas de antes do dilúvio. Gente é pra brilhar, não pra morrer de medo.
Assim ela prosseguiu seu caminho, na tormenta, e brilhava na hostilidade das horas, até que tudo se apagou de vez.
Na radiante manhã do dia seguinte, foi encontrada morta, na Lagoa da Pampulha, tendo sido levada pelas correntezas do córrego do Bairro Urca, que, nela, deságuam, nos esgotos da Logoa da Pampulha: bomba radioativa de nossas bostas, a adubar uma estranha flor que ali, apesar de tudo, insiste e persiste, florindo sua imprópria própria luz.
Não se chamava Narciso, a flor. É anônima, por nunca ser a mesma, na correnteza dos rios de muitos nomes.
Na lama dos esgotos ou nos esgotos das lamas, na flor sem nome, alma, Joana ainda vive, inclassificável, inapreensível, invisível, brilho de esperança, no narcísico dilúvio do mundo; rio que insiste em ser igual a si mesmo, em cada ponto de seu fluir, afogando as Joanas que vivem ao sul: Cruzeiro do Sul.
Comentários
Escrevi sobre algo parecido há um tempo, de forma bastante diferente, mas talvez seja a msm temática.
abraços!
leosucubos.multiply.com
Adorei o conto!
forte abraços
renata
Em sua trajetória, da escola à casa, a escolha pessoal que Joana fez em meio às alternativas que se lhe dispuseram deu-se após uma outra que se realizou na anterioridade de suas decisões, portanto, independetemente dela: a vida se lhe impôs como destino o seu nome, Joana (aliás, Leila, que significa negra como a noite). Essa escolha que, precedeu todo o seu posicionamento, definiu, entre as poucas opções, a vereda incerta por que pôde trilhar: o rio.
Aí, nos percursos urbanos, por entre calles, valas e cafuas circunscritas pelas montanhas mineiras, ela (Leila, ou Joana) ouvia uma multiplicidade de vozes com tonalidades e timbres distintos.
Umas tentaram apoiá-la em certezas eternas, defendendo a fixidez das estrelas no céu, a vitória "à française" quase certa; sem sucesso. Outras, alimentando-se do fluir permanente e das incertezas constantes, impeliram-na caminhar ao relento, distante, entre a casa e a escola, nas orlas pútridas do cais de um porto alegre, preferível a um porto seguro; por pouco. Algumas vozes talvez tivessem as cores "rouge, blanche et bleu" daquilo que se pretendia vero e universal, livre de intempéries do tempo e de corrosões próprias do mundo das contingências; nem se enunciou. Mas as vozes que a libertaram, traziam as tintas da singularidade, viviam sob o signo do que é provisório, curtas como certas ondas, breves e belas como as músicas de Schumann; fotogramas de uma lagoa conceitual.
Belo conto, Eustáquio (Le Padre)
Joana tinha a si mesma (s) como guia, Penso que esta é a maior liberdade
isso possibilitou que
os seus “eus” emergissem.
Não se engane, é o destino de todos nós, caríssimo,
o rio, o rio, rio, rio... e isso não é delírio.
independente de quantos eus tenhamos a nossa finitude uma hora se apresenta,
apenas o rio permanece.
Oligopolias em pleito pelo domínio da máquina desejante, tais ecos se pronunciaram, com conhecimento psicológico, pela boca do geraseno: "[...] legião é meu nome, porque somos muitos" (LUCAS 5: 9).
Joanas, a "Leila" de Eustáquio e a D'arc "française" sintonizavam-se nessas ondas curtas, bastando-se a si mesmas, assim, numa perene automasturbação. Reféns de si, tais vozes libertaram-se: as do geraseno, tomando os corpos dos porcos que se atiraram nas águas do precipício de Gerasa; as vozes de Joana D'arc calaram-se no fogo do Santo Ofício; as da Joana-Leila, desse conto eustaquino, nas águas podres da Pampulha em fotogramas de uma lagoa conceitual.
Todas viram Narrativas heterodiegéticas, letras mortas na grafia desses demiurgos que tecem os simulacros das teias precárias desse "existirmos, a que será que se destina"?
O conto é belo porque já nos incitou ao discurso.
Ah, grato pelo "caríssimo", raramente não me engano.
Acho que minhas análise passa pela via do , digamos assim, bem pessoal, sou uma estrangeira nas letras,até pouco tempo se você me falasse de Malarmé eu ia achar que se tratava de um doce. Fui acolhida no mestrado de letras pelo professor Luis, sou sua orientanda e aluna
(este é um forte analisador), sendo assim, já na primeira leitura, me identifiquei com aquela figura emblematica, embora não use tranças... e com o rio, rio, o rio, que de vez em quando me carrega... que se eleva com uma potencia... ai, ai... é isso carissimo... eheheheh
abraços
renata