José Cemí nasceu em condições absolutamente adversas. Joana estava sem o narrador, que tinha saído pra contar algumas estórias verossímeis, a fim de garantir a sua sobrevivência, ou, pelo menos, tentar.
Com o narrador longe, tudo podia acontecer, o pior. Mas também o melhor. Ela já não pagava o aluguel do barraco há meses: foi despejada. Grávida, sem ninguém pra ajudá-la, resolveu procurar José, o pai, agora traficante. Mas nada de encontrá-lo, em parte alguma.
De repente, as contrações do parto começaram a se manifestar. Ela estava no centro de Belo Horizonte. Tentou encontrar alguns hotéis baratos, na altura da Avenida Paraná, mas todos exigiam que ela efetuasse o pagamento com antecedência, o que ela não podia fazer, sem um tostão no bolso, e então alegava que era amante do narrador, que voltaria de viagem, e resolveria tudo. Vá embora sua vadia! A mesma frase ecoava aonde ela fosse, pois o narrador era desconhecido de todos, de modo que quanto mais ela o mencionava, como uma espécie de cheque caução simbólico, mais Joana era desprezada, e enxotada pra fora de todos os dentros.
Então ela apareceu no hospital Odilon Beres, da prefeitura de Belo Horizonte, mas os médicos estavam em greve. E saiu, sem destino, pelas baixadas do bairro Lagoinha, até que, debaixo de um daqueles viadutos ali, daquela região, ela foi finalmente acolhida por alguns mendigos:
- Alegra-te, cheia de graça, o senhor é contigo, bendita tu entre as mulheres!, disse
uma das mendigas.
- Pode entrar, disse outra, é simples nosso viaduto, mas é digno. Não temas, Joana, porque encontraste graça diante do Dono de todas as coisas, e conceberás por sua palavra.
- Deverei conceber por obra do senhor Deus vivo e parir depois como toda mulher pare? –perguntou Joana.
- Não assim, Joana, através de seu corpo te cobriu Deus, o satanás voraz de corpos juvenis, por meio da presença fálica do Espírito Santo, o antes ingênuo José, o carpinteiro; agora com sua sombra te cobrirá o poder do senhor. Por isso o ser santo que nascerá de ti deve ser chamado Filho do Baixíssimo. Dar-lhe-ás o nome de José Cemí, pois salvará seu povo da perdição e da ignorância geral, de ricos e de pobres, guiando-os pra que se tornem guias de si mesmos, através da glória de uma nova época, a que nos tornará aptos pra viver em abundância de afetos, e nós todos seremos os filhos bastardos da mesma terra órfã, e ninguém será dono de nada, aleluia! Seja você, Joana, a manifestação desse novo começo, um mínimo pedaço da terra órfã, ela toda.
Cada louco saía delirando uns fragmentos bíblicos, a dizer todos os nomes de Deus, que ali estava pra nascer Cemí, o salvador, que é o Cristo, o Senhor Barroco, o Conselheiro Magnífico, o Todo Poderoso em sua fragilidade absoluta, no nascimento; o Príncipe da Paz, o Deus dos Pobres, Deus Misericordioso, Aquele que é Aquele que é, o dia e a noite, o inverno e o verão, a morte e a vida, a fome e a saciedade, O que muda como o fogo e quando é misturado com fragrância de flores é nomeado segundo o tipo de perfume, O inominável, singular e plural, YHWH, o tetragrama, as quatro letras, os quatros primeiros números, 1,2, 3, 4, o artilheiro, o camisa 10, 1 + 2 + 3 + 4; Yahvé Alá Buda Jesus, os pontos cardinais e, principalmente, a multiplicidade infinita de pontos entre o sul e o leste, entre o norte e o oeste, e entre todos entre si; o Deus incompreensível aos olhos do legitimado, o Ilegítimo, o Inverossímil, o Desacreditado, o Intercessor, aqui e lá, flor desabrochando, acendendo o brilho das estrelas .
A prova incontestável de que naquele ventre sagrado habitava o Criador, dizia um mendigo de olhos arregalados, estava no fato de que todos os mendigos viram cair, naquele exato momento, uma estrela cadente, e todos ao mesmo tempo fizeram o pedido de, do rabo luminoso daquela estrela, fosse projetado pro mundo o salvador dos pobres, Cristo, o espírito a um tempo mais pesado e mais leve que esta terra já viu, portador da dignidade da era da pobreza, olhar lançado e laçando o horizonte do banquete pra todos.
Rápido, rápido, um mendigo carpinteiro improvisou uma cama feita de caixotes pra Joana. Sobre as tábuas jogou bastantes jornais velhos, um dos quais trazia a manchete de que Lula teria dito que iria realizar uma ampla reforma agrária, mas que era preciso esperar, porque faltava dinheiro no caixa do Tesouro Nacional. Foi exatamente o jornal que ficava entre as pernas arreganhadas de Joana, por isso era possível não só ler o artigo, mas visualizar, também, uma foto do rosto do presidente Lula, com o boné do MST na cabeça, a assistir, impassível, o nascimento do menino Cemí, de camarote.
Com os mendigos todos em volta, assistida por um doido que acreditava ser médico pediátrico, o menino Cristo foi nascendo, segundo o relato dos mendigos, que o narrador coletou tempos depois, por não ter podido acompanhar a hora do nascimento de José Cemí.
O doido mendigo médico pediátrico, assim que José Cemí nasceu, o colocou no colo, limpou-o com o mesmo jornal que trazia a foto de Lula, maculando-a de sangue, e, em seguida, foi fazendo, lentamente, um giro de 360o, a fim de ir mostrando o menino a todos os mendigos, que estavam entorno.
Em coro, logo após o último mendigo ter visto o recém-nascido, todos gritaram, felizes: “Glória a Deus no mais alto dos céus, e paz na terra aos homens de boa vontade, o menino Jesus nasceu pra nos salvar, o paraíso, a paz, vem dele, do menino Jesus envolto em jornais velhos. Glória a Deus aos homens de boa vontade! Nasceu o salvador. Aleluia, Aleluia! A era imaginária do estilo da pobreza finalmente desponta da dissonância estridente emanada do choro do Cristo Salvador: uennn, ueennnnn, uennn!”
Com o narrador longe, tudo podia acontecer, o pior. Mas também o melhor. Ela já não pagava o aluguel do barraco há meses: foi despejada. Grávida, sem ninguém pra ajudá-la, resolveu procurar José, o pai, agora traficante. Mas nada de encontrá-lo, em parte alguma.
De repente, as contrações do parto começaram a se manifestar. Ela estava no centro de Belo Horizonte. Tentou encontrar alguns hotéis baratos, na altura da Avenida Paraná, mas todos exigiam que ela efetuasse o pagamento com antecedência, o que ela não podia fazer, sem um tostão no bolso, e então alegava que era amante do narrador, que voltaria de viagem, e resolveria tudo. Vá embora sua vadia! A mesma frase ecoava aonde ela fosse, pois o narrador era desconhecido de todos, de modo que quanto mais ela o mencionava, como uma espécie de cheque caução simbólico, mais Joana era desprezada, e enxotada pra fora de todos os dentros.
Então ela apareceu no hospital Odilon Beres, da prefeitura de Belo Horizonte, mas os médicos estavam em greve. E saiu, sem destino, pelas baixadas do bairro Lagoinha, até que, debaixo de um daqueles viadutos ali, daquela região, ela foi finalmente acolhida por alguns mendigos:
- Alegra-te, cheia de graça, o senhor é contigo, bendita tu entre as mulheres!, disse
uma das mendigas.
- Pode entrar, disse outra, é simples nosso viaduto, mas é digno. Não temas, Joana, porque encontraste graça diante do Dono de todas as coisas, e conceberás por sua palavra.
- Deverei conceber por obra do senhor Deus vivo e parir depois como toda mulher pare? –perguntou Joana.
- Não assim, Joana, através de seu corpo te cobriu Deus, o satanás voraz de corpos juvenis, por meio da presença fálica do Espírito Santo, o antes ingênuo José, o carpinteiro; agora com sua sombra te cobrirá o poder do senhor. Por isso o ser santo que nascerá de ti deve ser chamado Filho do Baixíssimo. Dar-lhe-ás o nome de José Cemí, pois salvará seu povo da perdição e da ignorância geral, de ricos e de pobres, guiando-os pra que se tornem guias de si mesmos, através da glória de uma nova época, a que nos tornará aptos pra viver em abundância de afetos, e nós todos seremos os filhos bastardos da mesma terra órfã, e ninguém será dono de nada, aleluia! Seja você, Joana, a manifestação desse novo começo, um mínimo pedaço da terra órfã, ela toda.
Cada louco saía delirando uns fragmentos bíblicos, a dizer todos os nomes de Deus, que ali estava pra nascer Cemí, o salvador, que é o Cristo, o Senhor Barroco, o Conselheiro Magnífico, o Todo Poderoso em sua fragilidade absoluta, no nascimento; o Príncipe da Paz, o Deus dos Pobres, Deus Misericordioso, Aquele que é Aquele que é, o dia e a noite, o inverno e o verão, a morte e a vida, a fome e a saciedade, O que muda como o fogo e quando é misturado com fragrância de flores é nomeado segundo o tipo de perfume, O inominável, singular e plural, YHWH, o tetragrama, as quatro letras, os quatros primeiros números, 1,2, 3, 4, o artilheiro, o camisa 10, 1 + 2 + 3 + 4; Yahvé Alá Buda Jesus, os pontos cardinais e, principalmente, a multiplicidade infinita de pontos entre o sul e o leste, entre o norte e o oeste, e entre todos entre si; o Deus incompreensível aos olhos do legitimado, o Ilegítimo, o Inverossímil, o Desacreditado, o Intercessor, aqui e lá, flor desabrochando, acendendo o brilho das estrelas .
A prova incontestável de que naquele ventre sagrado habitava o Criador, dizia um mendigo de olhos arregalados, estava no fato de que todos os mendigos viram cair, naquele exato momento, uma estrela cadente, e todos ao mesmo tempo fizeram o pedido de, do rabo luminoso daquela estrela, fosse projetado pro mundo o salvador dos pobres, Cristo, o espírito a um tempo mais pesado e mais leve que esta terra já viu, portador da dignidade da era da pobreza, olhar lançado e laçando o horizonte do banquete pra todos.
Rápido, rápido, um mendigo carpinteiro improvisou uma cama feita de caixotes pra Joana. Sobre as tábuas jogou bastantes jornais velhos, um dos quais trazia a manchete de que Lula teria dito que iria realizar uma ampla reforma agrária, mas que era preciso esperar, porque faltava dinheiro no caixa do Tesouro Nacional. Foi exatamente o jornal que ficava entre as pernas arreganhadas de Joana, por isso era possível não só ler o artigo, mas visualizar, também, uma foto do rosto do presidente Lula, com o boné do MST na cabeça, a assistir, impassível, o nascimento do menino Cemí, de camarote.
Com os mendigos todos em volta, assistida por um doido que acreditava ser médico pediátrico, o menino Cristo foi nascendo, segundo o relato dos mendigos, que o narrador coletou tempos depois, por não ter podido acompanhar a hora do nascimento de José Cemí.
O doido mendigo médico pediátrico, assim que José Cemí nasceu, o colocou no colo, limpou-o com o mesmo jornal que trazia a foto de Lula, maculando-a de sangue, e, em seguida, foi fazendo, lentamente, um giro de 360o, a fim de ir mostrando o menino a todos os mendigos, que estavam entorno.
Em coro, logo após o último mendigo ter visto o recém-nascido, todos gritaram, felizes: “Glória a Deus no mais alto dos céus, e paz na terra aos homens de boa vontade, o menino Jesus nasceu pra nos salvar, o paraíso, a paz, vem dele, do menino Jesus envolto em jornais velhos. Glória a Deus aos homens de boa vontade! Nasceu o salvador. Aleluia, Aleluia! A era imaginária do estilo da pobreza finalmente desponta da dissonância estridente emanada do choro do Cristo Salvador: uennn, ueennnnn, uennn!”
Comentários
Muito movimento.
Sua escrita me faz pensar e tentar continuar lendo devorando livros para chegar até ti. Seu patamar é como um alvo para mim.
Gostei muito do que li.
-Adorei tua visita, obrigada, e não esqueça de voltar.
-Hoje..., me perdoa amigo ser visita de doutor, teu livro é p'ra ler com a merecida atenção, eu amo ler mas... saboreando pelo caminho!
Hoje não dá, é muita letra p'ra ler... ;))
Mas eu volto, juro... :)))
Beijos Feliz 2010
Saúde e paz!
Um 2010 com as transformações, possíveis, caro Luis.
Beijo.
;)
Obrigada, Luis, pelo carinho e pela amizade... Para muito importantes.
Beijo e muito sucesso.
Interessante notar:
1. tal qual foram a Belem, terra natal de José, você volta às suas raízes mineiras colocando a história com liberdade nos trajetos de BH;
2. a releitura da velha história escancarando a realidade com suas cores e sangue na cara do presidente.
3. a elevação debochada de todos à dignidade de deuses;
4. a sugestão de que a era de heróis solitários acabou. Ou fazemos coletivamente ou não nos salvamos.
Um abraço.